KE 801 - Cansaço Mortal (Relato de desastre da Blackbox do Jetsite)

Relato de desastre da seção Blackbox do Jetsite


Na madrugada de 6 de agosto de 1997, um Boeing 747-300 da Korean Air Lines, operando o vôo KE801 e matrículado HL7468, acidentou-se na ilha de Guam, no Oceano Pacífico. A aeronave havia saído do aeroporto de Kimpo International em Seul, Coréia do Sul, com dois pilotos, um engenheiro de vôo, 14 comissários e 237 passageiros. Dos 254 ocupantes, 228 perderam a vida. Apenas 23 passageiros e três comissários escaparam, embora gravemente feridos. A aeronave possuia 13 anos de uso, desde que for a entregue, nova, pela Boeing à Korean Air, em 12 de dezembro de 1984. Apresentava 50.105 horas e 8.552 ciclos. Não havia sido registrado qualquer defeito ou falha grave. O Boeing havia passado por uma rigorosa inspeção no mês anterior ao desastre. O que teria acontecido então? Acompanhe mais este Blackbox.



Desastre do Voo KE 801 da Korean Air Lines

CAP-RDO: Transmissão de rádio do Comandante
F/O-RDO: Transmissão de rádio do Primeiro Oficial
CAP: Comentário (interno) do Comandante
F/O: Comentário (interno) do Primeiro Oficial
???: Tripulante não identificado
GUM: Controlador do centro de tráfego CERAP - Guam Combined CEnter / Radar Approach Control
TWR: Torre de Controle do Aeroporto de Agana, Guam.
GPWS: Alarme de proximidade do solo - Ground Proximity Warning System

01h10:00 - GUM: Korean 801, descida livre autorizada até 2.600 pés, mantenha nível 26.
01h10:07 - F/O-RDO: Descida livre autorizada 2.600 pés, manterá 2600.
01h11:51 - Cap: Bem, vou fazer um rápido briefing de aproximação. O ajuste ILS é uno uno zero três, o VOR Nimitz é uno uno cinco três, curso é zero seis três, se a visibildade é de seis (milhas), ao ficarmos visual selecionem o VOR no número dois e mantenham o VOR no TOD (top of descent). Vamos iniciar a descida quando estivermos a 150 milhas do VOR. Vou adicionar um pouco mais de velocidade além da velocidade prescrita (target speed). De resto, tudo ok... Em caso de arremetida, se estivermos VFR (Visual Flight Rules), mantenha visual e inicie curva à direita. Requisite vetoração radar. Em caso negativo, teremos de rumar para FLAKE 12. Como o glideslope está inoperante, manter MDA (Minimum Descent Altitude) de 560 pés e HAT (Height Above Touchdown) é 304 pés.

01h13:33 - Cap: Melhor começarmos a descer.
01h13:35 - F/O: Ok.
01h13:40 - F/O-RDO: Guam, Korean 801 livrando 410 para 260.
01h13:44 - GUM: Korean 801 livrando 410 para 2600, entendido.
01h13:33 - Cap: altímetro 2986, 34 nós.

O comandante começa a reclamar dos procedimentos adotados pela Korean Air para descanso de tripulantes, entre as reclamações, alguns trechos mostram claramente a insatisfação e evidenciam o cansaço do comandante:

01h20:20 - Cap: Se a viagem de ida e volta tem mais de nove horas, você ainda consegue algum tempo para descansar. Com oito horas ou menos, não te dão descanso. Eles nos fazem dar o máximo aqui, temos de trabalhar ao máximo. Oito horas nesta viagem não nos ajudam em nada.

01h20:28 - Cap: Dessa maneira, eles economizam em diárias de hotel e maximizam o rendimento de horas voadas, mas de toda forma, fazem o pessoal do 747 Classic (747-200 e 300) voar o máximo possível.

01h21:13 - Cap: Eh. Estou realmente com sono.
01h21:15 - F/O: Ah, com razão.
01h21:59 - F/O: Comandante, as condições em Guam não estão boas.

01h22:06 - GUM: Korean 801, informação Uniform (ATIS - Automatic Terminal Information Service) em Agana, ajuste altímetro 2986.
01h13:40 - F/O-RDO: Guam, Korean 801 com informação Uniform.

01h22:26 - Cap: Uh, muita chuva, hem?
01h23:45 - Cap: Solicite desvio de vinte milhas para a esquerda, na medida que formos descendo.
01h24:02 - F/O: (Mostrando ao comandante a tela do radar meteorológico) Você acha que vai estar chovendo mais por aqui? Nesta área aqui?

01h24:02 - Cap: Solicite desvio à esquerda, uno zero milhas... Dez milhas por causa do tempo.

01h24:30 - F/O-RDO: Guam, Korean 801 solicita desvio pela esquerda uno zero milhas.
01h22:06 - GUM: Korean 801, autorizado uno zero milhas.

Pelos próximos seis minutos, o CVR grava discussões dos tripulantes sobre os desvios necessários para evitar as formações de nuvens mais carregadas, diálogos intercalados com os checklists normais de aproximação. O check de pouso é completado a 01h25:38. No minuto seguinte, o engenheiro de vôo vislumbra luzes em meio às nuvens e afirma:

01h26:25 - F/E: É Guam, é Guam.
01h26:27 - Cap: Bom!
01h27:17 - F/E: Hoje o radar meteorológico nos ajudou muito.
01h26:58 - Cap: É mesmo, ele nos ajudou muito.
01h31:17 - F/O-RDO: Guam, Korean 801 livre de Charlie Bravo, (CB, nuvens cumulus nimbus) solicita vetoração para pista 06 esquerda.
01h31:31 - GUM: Korean 801, voe proa 120.
01h31:34 - F/O-RDO: Korean 801, proa 120.
01h31:39 - F/E: Approach checklist?
01h31:41 - Cap: Approach checklist.
01h31:43 - F/E: Luzes de aproximação?
01h31:44 - Cap: On.
01h31:44 - F/E: Instrumentos de navegação e rádios?
01h31:45 - Cap: Set e cross check.
01h31:46 - F/O: Set e cross check.
01h31:47 - F/E: Radio-altímetros?
01h31:48 - Cap: Set.
01h31:49 - F/O: Set.
01h31:50 - F/E: Trezentos.
01h31:50 - ???: Trezentos e quatro.
01h31:55 - F/E: Cintos de segurança?
01h31:56 - Cap: Afivelados.
01h31:56 - F/E: Approach checklist completo.
01h33:03 - Cap: Selecione freqüência do ILS no um.
01h33:07 - ???: Uno uno zero três.
01h33:09 - Cap: Uno uno zero três. Correto?
01h33:11 - F/O: Correto.
01h34:47 - Cap: Tem um enorme CB alí à esquerda.
01h34:23 - F/E: Vai chacoalhar muito?
01h34:24 - Cap: Poderá melhorar quando descermos um pouco.
01h35:29 - Cap: Flaps um.
01h35:30 - F/O: Flaps um.
01h35:50 - Cap: Cinco.
01h35:51 - F/O: Flaps cinco.
As 01h37:55, soa na cabine um alerta de altitude, emitido pelo GPWS - Ground Proximity Warning System, programado para disparar automaticamente toda vez que a aeronave se aproximar, em excesso e inadvertidamente, do solo.

01h38:37 - Cap: Flaps dez.
01h38:38 - F/O: Sim senhor, Flaps dez.
01h38:49 - GUM: Korean 801, vire à esquerda, proa zero nove zero, intercepte o localizador.
01h38:53 - F/O-RDO: Proa zero nove zero, interceptar o localizador.
01h39:30 - F/O: Glideslope... (ininteligível)... Glideslope.
01h39:44 - GUM: Korean 801, autorizado ILS pista seis esquerda, glideslope fora de uso.
01h39:48 - F/O-RDO: Korean 801 entendido, autorizado ILS pista seis esquerda.
01h39:55 - F/E: O glideslope está funcionando? Glideslope? Hem?
01h39:56 - Cap: Sim, sim, está funcionando.
01h39:57 - F/E: Cheque se o glideslope está funcionando?
01h39:59 - Cap: Está?
01h40:00 - F/O: Não está.

A 01h40:06, o CVR gravou o som do alerta de altitude. A aeronave começou a descer de 2.640 pés a 9 milhas náuticas da cabeceira da pista 06L, e a 5.7 milhas náuticas do VOR de Nimitz.

01h40:22 - F/E: Glideslope está incorreto.
01h40:33 - F/O: Aproximando mil e quatrocentos.
01h40:37 - Cap: Como o glideslope não está funcionando, precisamos manter 1440. Selecione.
01h40:42 - GUM: Korean 801, contate torre de Agana em 118.1, tenha um bom dia.
01h40:47 - F/O-RDO: Obrigado, 118.1.
01h40:55 - F/O-RDO: Torre Agana, Korean 801, interceptou localizador pista 6L.

O CVR grava neste instante outro altitude de alerta, e o FDR indica que o Boeing desce abaixo de 2.000 pés a 6.8 milhas da cabeceira e a 3,5 milhas náuticas do VOR Nimitz.

01h41:01 - TWR: Korean 801 Heavy, torre de Agana, pista 06L, vento zero nove zero com sete. livre pouso. Verifico que o vôo hoje é operado por um Boeing 747.
01h41:14 - F/O-RDO: Korean 801 Heavy, livre pouso pista 06L.
01h41:22 - Cap: Flaps trinta.
01h41:23 - F/O: Flaps trinta.
01h41:27 - F/O: Flaps trinta confirmado.
01h41:31 - F/O: Landing check.
01h41:32 - Cap: (várias palavras ininteligíveis)... Verifique com cuidado.
01h41:33 - Cap: Selecione 560 (a altitude mínima de descida ou MDA).
01h41:37 - Cap: Landing check.

Nesse momento, o GPWS avisa da proximidade do solo com um alerta inicial de altitude sobre o solo:

01h41:37 - GPWS: One Thousand! (Um mil pés acima do terreno)
01h41:46 - Cap: O glideslope não está funcionando?
01h41:48 - Cap: Acionar limpador de pára brisa.
01h41:49 - F/E: Acionado.
01h41:53 - F/O: Landing check.
01h41:55 - F/E: Ignition flight start. flight start.
01h41:59 - F/O: Não avista? (a pista)
01h42:00 - GPWS: Five Hundred! (Quinhentos pés acima do terreno)
01h42:02 - F/E: (assustado) Hem?
01h42:03 - F/O: Estabilize, estabilize.
01h42:04 - Cap: Ah, sim.
01h42:05 - F/E: Auto-brake?
01h42:07 - Cap: Mínimos.
01h42:07 - F/E: Mínimos.
01h42:08 - Cap: Trem de pouso embaixo, três verdes.
01h42:09 - F/E: Trem de pouso embaixo, três verdes, speedbrake armado.
01h42:11 - F/E: Aviso de não fumar aceso.
Exatamente a 01h42:14, o GPWS soa novamente, avisando que a aeronave atingiu a altitude mínima sobre o terreno:

GPWS: "Minimums minimums" seguida pelo alerta "sink rate" 3 segundos depois. O Boeing perde altura muito rapidamente.

01h42:18.17 - F/O: Uh, sink rate ok... (sic)
01h42:19.04 - F/E: Duzentos pés (altitude sobre o terreno, aproximadamente 70 metros).
01h42:19.47 - F/O: (hesitante) Vamos executar uma arremetida.
01h42:20.56 - F/E: Não avisto.
01h42:21.07 - F/O: (firmemente) Não avisto. Arremeter!
01h42:22.18 - F/E: Arremeter!
01h42:23.07 - Cap: Go around (arremeter em inglês).

Depois de um segundo, o FDR registra que a potência máxima é aplicada aos motores. O manche começa a ser puxado para trás, à razão de 1 grau, aproximadamente, por segundo.

01h42:23.77 - O microfone de cabine capta o som do piloto automático sendo desligado.

01h42:23.84 - F/O: Flaps.
01h42:24.05 - GPWS: One Hundred! (Uma centena de pés acima do terreno)
01h42:24.84 - GPWS: Fifty! (50 pés acima do terreno)
01h42:25.19 - GPWS: Forty! (40 pés acima do terreno)
01h42:25.50 - GPWS: Thirty! (30 pés acima do terreno)
01h42:25.78 - GPWS: Twenty! (20 pés acima do terreno)

01h42:25.78 - Som do primeiro impacto contra o solo.
01h42:28.91 - O microfone de cabine capta o som de um dos tripulantes gritando. A seguir, vários sons provocados pelos impactos do Boeing contra o solo.

01h42:32.53 - Fim da gravação.

O Boeing colidiu contra os últimos metros da colina Nimitz em Guam, a aproximadamente 660 pés de altitude e a 3,3 milhas náuticas da cabeceira. O ângulo de ataque do 747 na hora do impacto era cabrado (nariz para cima) com 3°. O relatório final do NTSB, aponta como causas prováveis do acidente uma somatória de fatores: deficiente operação por parte do comandante ao falhar na pilotagem do jato e no briefing aos tripulantes para a execução de uma aproximação visual; deficiente monitoramento da operação por parte do engenheiro de vôo e primeiro oficial, sobretudo por não verificarem os procedimentos e decisões de pilotagem do comandante; fadiga do comandante; deficiências no programa de treinamento da Korean Air; responsabilidade da FAA (Federal Aviation Agency) em não ativar o sistema MSAW (Minimum Safe Altitude Warning) em Guam.

O comandante tinha 42 anos e havia sido piloto militar. Foi contratado pela Korean Air em 1991 como primeiro oficial de Boeing 727. Passou ao comando do 727 em 27 de dezembro de 1992 e ao comando de 747 em 20 de agosto de 1995. Tinha 8.932 horas de voo, sendo 6.084 como piloto civil. O primeiro-oficial tinha 40 anos e também havia sido piloto militar. Tinha 4.066 horas de voo, sendo 1.790 como piloto civil e 1.560 no Boeing 747. O engenheiro de voo tinha 57 anos, havia trabalhado como navegador na força aérea coreana. Tinha 13.065 horas de voo, sendo 11.088 como engenheiro de voo na Korean e destas, e 1.573 horas no Boeing 747.

Lições aprendidas com o Desastre do Voo KE 801

Como um piloto experiente, como o comandante do KE 801, poderia ter cometido tantos erros? A resposta do relatório aponta para a fadiga. O comandante já estava desperto há 11 horas no momento do impacto. Na gravação do CVR ele comenta claramente, a 01h21:13: "Eh. Estou realmente com sono" Suas ações e faltas subsequentes confirmam isso: Briefing incompleto; confusão sobre estado operacional do glideslope; lentidão na reação ao alerta do primeiro oficial "01h42:21.07 - F/O: Não avisto. Arremeter."

Todos esses fatores, somados às condições de visibilidade ruins, ao relevo acidentado e elevado a pouco mais de três milhas da cabeceira contribuíram para o trágico fim do Korean 801. A grande lição: a fadiga é um inimigo insidioso, silencioso, que afeta diretamente os reflexos e a capacidade de reação. Respeitar os limites do organismo - e permanecer atento aos próprios sinais de fadiga nos membros de uma tripulação - é muito mais importante do que se imagina. É mesmo uma questão de vida ou morte.

Fotos do Desastre Korean Air 801

Desastre com o voo Korean Air Lines 801

Desastre com o voo Korean Air Lines 801

Desastre com o voo Korean Air Lines 801

Desastre com o voo Korean Air Lines 801

Desastre com o voo Korean Air Lines 801

Desastre com o voo Korean Air Lines 801

Fonte: Este relato foi extraído do extinto site Jetsite, do grande Gianfranco "Panda" Beting, da seção Blackbox, com fins de não se deixar perder o conteúdo daquele fabuloso site, nossa principal fonte de referência no mundo da aviação nos anos 2000. O texto é do Panda, algumas fotos e vídeos colocamos a parte, para contribuir com mais dados e informações.

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