Aeroflot 593 - Trágica Insensatez (Blackbox do Jetsite)

Relato de Tragédia da Blackbox do Jetsite

De todos os acidentes que você vai ler no Blackbox do Jetsite, este certamente é o mais bizarro. Poucas vezes, na história da aviação, viu-se tamanha imprudência e insensatez. Esta é a trágica e patética história do voo SU 593, um Airbus A310-300 da empresa estatal russa Aeroflot, operando o serviço regular sem escalas entre Moscou e Hong Kong.



Até pouco depois da queda do Muro de Berlim, e conseqüente esfacelamento da antiga União Soviética, a Aeroflot era a maior empresa aérea do mundo, com mais de 11.000 aeronaves, todas soviéticas. Até o início dos anos 90, os padrões de serviço da empresa estavam mesmo ainda no tempo da foice e do martelo. Atrasos, cancelamentos e mudanças de horários sem prévio aviso eram regra. Serviço de bordo "indiferente ou brutal," como a maioria dos viajantes ocidentais reportavam. E o pior: com índices abismais de segurança aérea. A imagem da companhia, tanto nas repúblicas soviéticas como no resto do mundo só não era pior porque muitos dos acidentes simplesmente eram "escondidos" da mídia, naqueles tempos anteriores à glasnost.

Nessa fase de dramáticas mudanças, os administradores da Aeroflot concluíram que era fundamental modernizar-se, "ocidentalizando-se" com a compra de equipamentos não-soviéticos. A outrora gigantesca empresa desmembrou-se em dezenas de companhias aéreas nacionais de cada uma das novas repúblicas da Comunidade Independente de Nações, a Aeroflot convertendo-se na empresa aérea de bandeira da Rússia. Logo tratou de iniciar uma modernização e ocidentalização de sua frota de longo curso. Recebeu propostas da McDonnell Douglas (MD-11), Boeing (747-400) e Airbus (A310-300). Acabou optando pelo arrendamento de cinco jatos A310-300, operados sob matrícula francesa, país que havia providenciado a complexa engenharia de financiamento da operação e que achou por bem reter a propriedade dos jatos.

Na noite de 22 de março de 1994, o A310-300 de matrícula F-OGQS estava pronto para partir do aeroporto de Moscou - Sheremetyevo. O serviço Magistrale, como a Aeroflot havia batizado a ligação entre Moscou e Hong Kong, seria operado naquela noite por uma aeronave novíssima. Batizado de Glinka, em homenagem ao compositor russo Mikhail Ivanovich Glinka, (1804-1857) o F-OGQS tinha apenas 896 ciclos e 5.375 horas voadas. Entregue à Aeroflot em dezembro de 1992, era o mais novo dos cinco operados pela empresa. Em pouco mais de um ano de serviço, não havia requerido nenhum reparo significativo, nem apresentado qualquer pane.

A bordo, a tripulação técnica era composta pelo comandante master (responsável pelo voo), Andrei Danilov, 40 anos, 9.675 horas de voo e 950 horas no comando dos A310. Comandante Yaroslav Kudrinsky, 39 anos, 8.940 horas de voo e 750 no comando dos A310. Primeiro oficial Igor Piskarev, 33 anos, 5.855 horas de voo, sendo mais de 3.000 no comando de Tupolev 134 e apenas 440 horas como co-piloto nos A310. Nove comissários (as) e mais 63 passageiros perfaziam um POB (People On Board) de 75 pessoas.

A partida deu-se pela pista 25 e a subida em rota do Airbus foi absolutamente normal. Pesando 145 toneladas, bem abaixo de seu peso máximo, o Airbus subiu rapidamente para a altitude de cruzeiro de 33.000 pés. O jantar logo foi servido e duas horas depois já havia sido retirado. A maioria dos passageiros tratou de dormir. Alguns assistiam ao filme projetado nas telas do então moderníssimo jato.

Com mais de quatro horas de voo, pouco depois da meia-noite, horário de Moscou, o cmte. Danilov entregou o comando do voo ao cmte. Kudrinsky e foi descansar numa das poltronas da primeira classe, reservada para esse fim. Esse é o procedimento habitual para um voo operado com uma tripulação que é chamada de "Composta." Há ainda a tripulação de "revezamento", na qual aeronaves operam com dois comandantes e dois co-pilotos, e a tripulação simples, com apenas o número mínimo de tripulantes técnicos a bordo. Este padrão normalmente é válido para vôos de até 10 horas de duração.

Kudrinsky cuidaria do voo durante a madrugada e então entregaria de volta o comando a Danilov antes da chegada. Este executaria o pouso em Hong Kong. Na volta, seria exatamente o contrário, com Kudrinsky decolando e pousando em Moscou e Danilov assumindo o comando durante o voo de cruzeiro na viagem de retorno à capital russa.

A Tragédia do Voo 593 da Aeroflot

Após entrar na cabine de comando e sentar-se na poltrona da esquerda, o cmte. Kudrinsky resolveu trazer para o interior da cabine de comando dois passageiros especiais, que naquela noite o acompanhariam até Hong Kong: seus filhos adolescentes, Yana, de 13, e Eldar, de 15 anos.

Ocupava também a cabine de comando outro comandante de A310 da Aeroflot, Victor Makarov, que embora viajasse como passageiro, havia passado boa parte do vôo com seus colegas. Makarov trazia uma câmera de vídeo e ofereceu-se para filmar o cmte. Kudrinsky e seus dois filhos na cabine de comando. Eram 00h40 quando Kudrinsky saiu de seu assento e convidou Yana ocupar seu posto de trabalho.

O primeiro oficial Piskarev observava a alegria dos dois adolescentes. Relaxado, havia posicionado seu assento completamente para trás, limitando-se a observar a animação dos jovens e o progresso do A310 por sobre a imensidão escura e gelada da Sibéria.

"Então Yana, quer pilotar o jato? Então segure a direção" sugeriu Kudrinsky à sua filha. A resposta afirmativa fez com que a jovem "assumisse" e segurasse o manche. Kudrinsky então debruçou-se por sobre o console central e, esticando o braço, alcançou o console superior do painel frontal, onde estão os comandos do piloto automático. O comandante então alterou em alguns graus a proa do jato. O piloto automático fez uma leve curva, dando a Yana a sensação de estar no comando do Airbus.

Satisfeita, Yana levantou-se. Eldar, sem hesitar um segundo, ocupou o assento da esquerda. Kudrinsky então explicou a seu filho os procedimentos básicos de pilotagem e prontificou-se a repetir o que havia feito com Yana. Quando Kudrinsky então alterou no painel do controle remoto a proa do jato, Eldar perguntou ao seu pai: "Posso girar o manche um pouco? Só um pouco?" Kudrinsky concordou e instruiu: "Gire para a esquerda e repare no horizonte girando também. Para o avião girar para a esquerda, gire o controle para a esquerda."

Eldar, claramente mais entusiasmado com a oportunidade de pilotar o A310, segurou o manche com a firmeza e entusiasmo que qualquer adolescente teria nas mesmas circunstâncias. Eldar girou o manche pelo menos 3 ou 4º, antes que Kudrinsky digitasse nos comandos do painel a proa anterior e re-selecionasse o modo NAV no piloto automático.

Sem que Kudrinsky suspeitasse, o gesto de Eldar havia sido suficientemente forte para desconectar os comandos de ailerons do piloto automático. O piloto automático continuava ligado, porém. Para Kudrinsky e Piskarev, tudo parecia normal. Até porque no A310, não há nenhuma indicação de desligamento do servo dos ailerons do sistema central do piloto automático. Como resultado, o controle de rolagem sobre o eixo longitudinal (roll) já não era comandado automaticamente. Ninguém na cabine de comando percebeu isso. Eram exatamente 00h55:36.

Com Eldar segurando o manche levemente para a direita, o A310 começou a girar em seu eixo longitudinal. Em apenas sete segundos, a asa direita já estava quase 20º abaixo da linha do horizonte. O Airbus continuava a girar à razão aproximada de um grau por segundo. Sem olhar para os instrumentos, voando numa noite escura e sem referências externas, os tripulantes não notaram a inclinação do avião.

Depois que passou dos 20º de inclinação, a razão de rolagem aumentou de um para 5.5º por segundo. Voando no ar rarefeito das grandes altitudes, o Airbus continuava a girar. Quarenta segundos após Kudrinsky acionar o modo NAV no piloto automático, o Airbus atingia 45º de inclinação. Eldar sentiu algo estranho, e notando o horizonte artificial inclinar-se à sua frente, perguntou ao pai:

Eldar: Por que ainda está virando?
Kudrinsky: Está virando sozinho?
Eldar: Sim, está!

Os três pilotos da Aeroflot então começaram a se questionar como e porque o Airbus estava "virando sozinho."

Makarov: Está girando mesmo. Deve ter entrado em algum tipo de zona de espera. (holding zone)
Piskarev: Está mesmo entrando numa "holding zone."
Kudrinsky: É mesmo?
Piskarev: Claro que está!

Os instrumentos nos painéis, porém, não confirmavam essa tese. Mesmo assim, aparentemente todos a aceitaram como válida, pois nos segundos seguintes, ninguém se moveu para sair dessa condição.

O piloto automático, programado para manter a altitude e proa, começou a trabalhar junto com o sistema de controle automático de potência (autothrottle) e acelerar os motores do Airbus, tentando manter o nível de vôo, apesar da sustentação ficar cada vez menor, devido ao pronunciado ângulo de rolagem.

Seja como for, naquele momento, o Airbus já havia passado de 50º de inclinação. O Cmte. Makarov, de pé no fundo da cabine, reagiu então à pronunciada inclinação do jato e gritou, assustado:

Makarov: Ôôô pessoal!

No segundo seguinte, o Airbus entrou em pré-estol. Sem sustentação, o jato não mais conseguia voar normalmente. O nariz do Airbus apontou para cima abruptamente e Kudrinsky gritou para Piskarev:

Kudrinsky: Segure! Segure a coluna de comando!

Piskarev não pôde obedecer à ordem de imediato. Preso ao seu assento pela crescente ação resultante do incremento da força de gravidade, ele não conseguia alcançar os comandos, até por ser um homem de pequena estatura, apenas 1,60m. Eldar, ainda sentado na poltrona do comandante, por sua vez, achou que a ordem de seu pai era para ele e agarrou firmemente o manche e o manteve seguro numa posição próxima da neutra, o que manteve o Airbus na mesma situação: rolando asas.

O A310 então efetivamente estolou. De sua altitude de 33.000 pés, o jato despencou, sem controle, sem que Piskarev conseguisse alcançar o manche e os pedais. Uma cacofonia total instalou-se na cabine, com os alarmes de altitude, piloto automático e estol soando ao mesmo tempo. Em meio à essa profusão de sons e sensações desagradáveis, provocadas pelo pronunciado mergulho, Eldar, aterrorizado e certamente coberto de culpa, tentava fazer alguma coisa. Girou o manche com força, o que efetivamente desconectou de vez todos os controles do piloto automático.

Eram 00h56:11. Os três pilotos da Aeroflot, imobilizados em suas posições pelo pronunciado mergulho, gritavam simultaneamente instruções conflitantes, aumentando ainda mais a confusão do adolescente:

Makarov: Vire para a esquerda!
Piskarev: Para o outro lado!
Kudrinsky: O outro lado!
Makarov: Para a esquerda!
Piskarev: Puxe! Puxe!

Tão logo o piloto automático foi desligado, outro sistema da aeronave entrou em operação. Em jatos da Airbus, o computador que governa o FMS - Flight Management System - é desenhado para impedir manobras bruscas ou atitudes anormais. Estas proteção adicional entra em ação automaticamente, toda vez que o computador registra em seus sensores alterações de atitude da aeronave potencialmente perigosas a um vôo normal. Em outras palavras, o computador assume para sí a responsabilidade de devolver à aeronave uma condição de vôo nivelado, "normal," em casos de manobras bruscas. Em casos assim, o computador, a bordo de jatos da Airbus, tem a última palavra, cancelando gestos ou manobras dos pilotos que ele considere bruscas demais.

Dessa forma, tão logo o nariz do Airbus ergueu-se no estol, o FMS tratou de contrabalançar o efeito e automaticamente comandou os profundores de maneira a abaixar o nariz. As ações desajeitadas de Eldar no manche em nada ajudavam, e de uma condição de nariz para cima, o Airbus entrou num mergulho acentuado, com o nariz 40º abaixo do horizonte. A velocidade cresceu de forma espantosa, até porque os dois motores continuavam regidos pelo autothrottle para a razão de vôo de cruzeiro. Agora o Airbus, numa fração de segundos, despencava acelerando rumo ao solo, a mais de 800km/h.A razão de descida nesse momento era de 70m/segundo ou 13,870 pés por minuto.

Piskarev ainda não conseguia chegar com seu assento mais próximo aos controles e simplesmente gritava para Eldar, vendo o solo aproximando-se cada vez mais:

Piskarev: Vire para a esquerda! Vire para a esquerda!

O comandante Kudrinsky, tentando voltar à sua poltrona, gritava desesperado para seu filho:

Kudrinsky: Saia daí! Saia daí! Saia daí!

Piskarev finalmente havia conseguido agarrar o manche e retomar, ao menos provisoriamente, o controle do Airbus. Ouvindo o ensurdecedor alarme de excesso de velocidade, ele tratou de trazer as manetes de potência para a posição de marcha lenta, ao mesmo tempo que puxava completamente o manche, tentando tirar o Airbus do mergulho em que se encontrava. Talvez ainda sob o efeito do caos na cabine de comando, ele continuou puxando o manche além do que devia. Com os motores em marcha lenta, o Airbus não só saiu do mergulho, como novamente assumiu uma atitude extrema, com seu nariz alto demais.

Só então Piskarev percebeu que sua velocidade havia caído para apenas 180km/h ou 97 nós. Num tom de voz quase histérico, pôs-se a gritar para Kudrinsky, que finalmente retornava à poltrona da esquerda no cockpit:

Piskarev: Potência máxima! Potência máxima!

Eram 00h56:54, O Airbus e seus ocupantes teriam ainda outros 67 segundos de vida. Sem potência nos motores, por incrível que pareça, o A310 estolou mais uma vez. Rapidamente, sua asa direita afundou, o nariz apontado para o solo num mergulho vertical (ângulo de 90º), a aeronave girando descontroladamente, em parafuso.

Kudrinsky pôs-se imediatamente a tentar controlar o parafuso, golpeando os dois pedais para tentar interromper as rotações contínuas no eixo lonitudinal. Piskarev, talvez em transe, mantia o manche puxado contra seu peito, como se sua ação pudesse reconduzir o Airbus à sua altitude de cruzeiro. Na realidade, só conseguiu fazer com que o nariz permanecesse 20º abaixo da linha do horizonte. Com dois pilotos experientes finalmente no comando, a razão de descida foi parcialmente reduzida e os esforços de Kudrinsky para controlar os parafusos do Airbus também surtiram efeito. O relógio digital na cabine marcava 00h57:56.

Mas aí já era tarde demais. Quando o jato estava quase conseguindo sair de seu mergulho, apenas cinco segundos após as asas finalmente terem sido niveladas, com o nariz ligeiramente abaixo da horizontal e em altíssima velocidade, o Airbus encontrou seu fim próximo à cidade de Novokusnetz. O A310 colidiu violentamente contra um morro de 600m de altura, cheio de altas coníferas e naquele momento, coberto por uma camada de neve de mais de um metro e meio de espessura. Explodiu imediatamente, matando todos os seus ocupantes numa fração de segundo. Eram 00h58:01. A vertiginosa queda havia durado 129 aterrorizantes segundos.

Praticamente nenhuma parte identificável do jato, bem como de seus ocupantes, foi resgatada do local do acidente, a despeito do governo russo ter mobilizado 238 homens, 4 aviões e 3 helicópteros na operação de resgate.

Tão logo as caixas pretas foram analisadas e seu conteúdo divulgado para a imprensa, todos os esforços de reconstrução da péssima imagem da Aeroflot foram perdidos. Uma máquina de 70 milhões de dólares, 150 toneladas de aço e alumínio, 75 vidas estupidamente interrompidas na solidão gelada da Sibéria.

Aeroflot 593 Acidente Desastre

Aeroflot 593 Acidente Desastre

Aeroflot 593 Acidente Desastre

Fonte: Este relato foi extraído do extinto site Jetsite, do grande Gianfranco "Panda" Beting, da seção Blackbox, com fins de não se deixar perder o conteúdo daquele fabuloso site, nossa principal fonte de referência no mundo da aviação nos anos 2000. O texto é do Panda, algumas fotos e vídeos colocamos a parte, para contribuir com mais dados e informações.

Um comentário:

  1. Após as apurações do acidente em que o gesto de um pai foi o pivô da tragédia - e não o garoto, na minha opinião, o que depois requereu aperfeiçoamentos nos protocolos e equipamentos, fico tentando imaginar o que sentiram os passageiros, pois quem estava na cabine, apesar de todo o pesadelo que estava vivendo, tinha noção do que estava acontecendo, já os passageiros e o restante da tripulação ficaram sem entender o que estava acontecendo e o porquê.
    Outro detalhe que começo a perceber em tragédias desse tipo: o vôo noturno prejudica a noção de referência e visualização espacial. O co-piloto ao fazer a aeronave subir, se tivesse a visualização diurna, perceberia que não precisava ter subido tanto verticalmente (semelhante ao que ocorreu no acidente do Air France no Oceano Atlântico com destino a Paris) e foi isso o que fez a aeronave perder a sustentação de vez, somada à grande perda de altitude, terminando por chocar-se contra um morro na neve.

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