Morte no Nevoeiro - a Tragédia do Surinam 764

Relato de tragédia de avião da Blackbox do Jetsite

Na noite de 6 de junho de 1989, em meio a um mar de jatos azuis e brancos da KLM, um DC-8 amarelo e laranja da Surinam Airways iniciou o táxi no movimentado aeroporto de Amsterdam - Schiphol. Era uma noite fechada, mas de temperatura amena na principal cidade da Holanda. Minutos depois, as 23h25 (local) o voo PY 764 decolou normalmente com destino a Paramaribo, capital do Suriname, antiga Guiana Holandesa. Os laços entre a matriz e a antiga colônia faziam desta a mais movimentada rota da empresa. A companhia empregava nessa rota um ultrapassado, ainda que confiável Douglas DC-8-62. A aeronave, um jato quadrimotor de primeira geração, não teria dificuldade em transpor os 7.317 km que separavam os dois aeroportos. E, depois da travessia noturna do Atlântico, deveria pousar no Johan Adolf Pengel International - Zanderij International Airport - na madrugada do dia seguinte.



A travessia oceânica transcorreu sem qualquer anormalidade. O veterano jato, entregue novo de fábrica à Braniff Airways em 1969, cruzou o Atlântico mais uma vez, como vinha fazendo desde que havia sido entregue. Tinha realizado com segurança 20.432 vôos, em um total de 52.706 horas. A tripulação técnica era composta pelo comandante Will Rogers, primeiro-oficial Glen Tobias e pelo engenheiro de voo Warren Rose. Todos eram norte-americanos e se conheciam bem, tendo voado várias vezes juntos. Seis comissários (as) cuidavam da cabine, onde estavam 178 passageiros, lotação máxima da aeronave.

Após quase cinco horas de viagem, a tripulação solicitou e recebeu as condições climáticas previstas previstas para a hora da chegada. A visibilidade encontrava-se prejudicada: apenas 900 metros em meio a denso nevoeiro. Havia apenas dois octas de cobertura de nuvens, cujas bases estavam a 400 pés sobre o terreno. O vento era calmo. A previsão anteriormente obtida pelos pilotos indicava mais de 6 km de visibilidade, o que pegou os pilotos de surpresa. Os tripulantes do PY 764 foram orientados para prosseguir em uma aproximação por instrumentos através do VOR/DME (VHF Omnidirectional Range / Distance Measuring Equipment) para a pista 10.

Apesar das instruções para pouso na pista 10 usando o procedimento de VOR/DME, a descida foi iniciada usando como auxílio o sistema de ILS/DME (Instrument Landing System/DME). Todo piloto experiente sabe que o sistema ILS não deve ser empregado como auxílio à navegação, pois sua função primordial é justamente a de auxiliar na aproximação final. Muitas vezes, estes equipamentos estão desajustados, ainda que levemente, o que significa que suas emissões de sinais podem não ser absolutamente confiáveis. Assim mesmo, desconfiados, os pilotos prosseguiram na aproximação usando o ILS. As conseqüências desta grave violação das normas operacionais você vai ver a seguir, quando entraremos a bordo do cockpit do DC-8.

Cap: Comandante
Cap-RDO: transmissão de rádio do comandante ao solo
F/O: primeiro-oficial
F/O-RDO: transmissão de rádio do primeiro-oficial
F/E: engenheiro de vôo
GPWS: Ground Proximity Warning System
TWR: Paramaribo Tower

Tragédia no Voo 764 d Surinam Airways

Cap:Me avise ao capturar a radial, ok?
F/O: Okay, capturada. Mantenha curva a trinta graus e você vai estar ficar certinho.
F/O: Mantenha os 30 graus.
F/E: Dois mil pés, e rápido.
Cap: Hem?
F/O: Atingindo dois mil pés, dois mil pés.
Cap: Okay.
Cap: Quer dizer que é para manter dois mil pés?
F/O: Não, apenas ao interceptar a radial 103.
Cap: Agora?
F/O: É para manter a 10 graus de onde estamos. Mas, bem, estaremos ok assim mesmo.
F/O: Agora você está na 103 do VOR.
F/E: Uno zero três inbound.
F/O: 103.
F/E: Ou 104?
F/O: É 103. Ah, desculpe, 104.
Cap: Okay.
F/O: 104.
Cap: Qual a distância?
F/O: Nós temos...
Cap: Qual a nossa distância?
F/O: Deixa eu ver aqui no DME.
Cap: Okay.
F/O: Pista a 13 milhas.
Cap: Okay.
Cap: Entrando no localizador agora.
F/O: Treze milhas DME.
F/O: Pista diretamente à frente, doze horas.
F/O: Okay.
F/O: Doze milhas DME.
Cap: Certo.
TWR: Suriname 764, vento calmo, livre pouso.
F/O-RDO: Livre pouso, Suriname 764.
F/O: No localizador.
TWR: Você vê as luzes da pista?
F/O-RDO: Afirmativo.
TWR: Entendido.
F/O: Hum, tem um pouquinho de nevoeiro de solo aí, um pouquinho só.
F/O: Okay, vamos descendo. Está vendo a pista?

O comandante mantêm a máxima concentração e não desgruda os olhos dos instrumentos. Talvez por isso não responda à pergunta do primeiro oficial, que comenta a seguir para si próprio:

F/O: Bem, eu estou vendo.
F/O: Glideslope capturado.
Cap: Descer trens de pouso.

O gravador de cabine capta o som dos trens de pouso sendo abaixados.

Cap: Não consigo capturar este FDP...
F/O: Nem eu.
Cap: É.
F/O: Paciência.

Mais alguns segundos preciosos se passam. O comandante não solicita o check pré-pouso. O engenheiro de voo toma a iniciativa:

F/E: Altímetros regulados, flaps e slats em configuração?
F/O: Vinte e três é o flap.
F/E: Três verdes, trem baixado e travado.
F/E: Ok.
Cap: Flaps 35.
F/E: Spoiler armado, ignição acionada.
Cap: Flaps 35.
F/E: Final flap acionando, comandante.
Cap: Okay, homem.
F/O: Ah, está desviando ligeiramente para a esquerda.
F/O: O ILS deve estar ligeiramente desregulado.
F/O: Está ligeiramente à esquerda da pista.
Cap: Se eu capturar o ILS já fico feliz.
F/O: Bem no glideslope. Um pouquinho acima.
Cap: Não consigo capturar o glideslope.
F/O: Ah, mas eu não confio mesmo nesse ILS.
Cap: Aí está. Capturando.
F/O: Eu acho que. Parece que você está um pouco alto.
Cap: Agora está tudo okay.
F/O: Está ligeiramente à esquerda da pista.
Cap: Okay.

O jato está a verdade abaixo do que deveria estar. O nevoeiro lá fora, em meio à escuridão da noite, reduz drasticamente a visibilidade externa. Os pilotos passam a confiar sobretudo nos instrumentos para orientação. O Ground Proximity Warning System (GPWS), ligado ao rádio-altímetro, no entanto, cumpre seu papel e soa seu alarme, informando em alto e bom som que a aeronave voa fora da rampa ideal de planeio, o "Glideslope". Sinal de que a aproximação não estava estabilizada, portanto, não estava segura. A despeito disso, o comandante prossegue descendo com o jato, provavelmente tentando "furar" a camada de nevoeiro.

GPWS: Glideslope!
F/O: Quinhentos pés (acima do terreno).
GPWS: Glideslope!
GPWS: Glideslope!
F/E: Merda!
Cap: Diga a ele para acender as luzes da pista!
GPWS: Glideslope!
F/O: Glideslope.
Cap: (impaciente) Daria para pedir para aumentar a intensidade das luzes na pista?
GPWS:Glideslope!
F/O: Como?
Cap: Peça à torre para aumentar a intensidade das luzes na pista!
F/O-RDO: Torre, teria como para aumentar a intensidade das luzes?
TWR: Imediatamente.
F/O: Trezentos pés.
Cap: Merda.
F/O: Duzentos pés.
Cap: Okay, MDA! -

Nesse instante, o comandante percebe que precisa manter a MDA - Minimum Descent Altitude - altitude mínima para aproximação, calculada para cada pista, em cada aeroporto do mundo. No caso de Paramaribo, a MDA é de 260 pés acima do nível do mar. Em aproximação pelo VOR-DME, a altitude mínima, também desrespeitada, é de 560 pés, há muito ultrapassda. Naquele instante, já era tarde demais. O DC-8 estava voando muito baixo.

Cap: Vou nivelar aqui mesmo nesta altitude...
F/O: Cento e cinquenta pés.

O desconforto da situação é evidente para os dois outros tripulantes na cabine de comando. O primeiro-oficial, no entanto, não faz qualquer sugestão. Já o engenheiro de voo, profissional mais experiente e posicionado imediatamente atrás do comandante, percebe que o jato voa muito baixo. Ele não demonstra qualquer hesitação em dar voz à sua opinião. Simplesmente grita ao comandante do voo 764:

F/E: Suba!
Mais dois segundos se passam, até que o CVR registra o som do primeiro impacto do DC-8 contra uma árvore. O motor 2 é arrancado na colisão, que ocorre 25 metros acima do solo. No instante seguinte, ouve-se nitidamente o som do stick-shacker atuando sobre as colunas de comando do DC-8. Esse som começa e continuará até o final da gravação. O engenheiro de voo continua a gritar ao comandante:

F/E: Suba! Suba!

A aeronave perde ainda mais altitude e velocidade com o primeiro impacto. A seguir, é a asa direita que colide contra árvores. Esse segundo impacto desestabiliza por completo a aeronave, que gira sobre seu eixo longitudinal. A aeronave em questão de pouco mais de um segundo fica invertida, de barriga para cima. O engenheiro olha para fora e, ao ver o terreno aproximando-se, comenta, simplesmente:

F/E: É isso. Estou morto.

No segundo seguinte, exatamente as 04h27, o Douglas DC-8 colide contra o solo, fragmentando-se súbita e violentamente. Dos 178 passageiros e nove tripulantes, apenas 11 passageiros escapariam com vida, ainda que gravemente feridos.

Após o acidente, o governo do Suriname instaurou uma Comissão Investigadora. Esta estudou o primeiro e maior desastre aéreo da história da companhia aérea de bandeira do país, fundada em 1954. Após mais de um ano, o estudo foi publicado, determinando as causas prováveis do acidente:

"A Comissão determinou que: a) Como resultado da absoluta falta de cuidado e atenção do comandante da aeronave, o jato desceu abaixo da altitude mínima de segurança durante a aproximação, até colidir com uma árvore. b) Um fator contribuinte foi a falta de critério dos administradores da área operacional da Surinam Airways ao não reforçarem, junto aos seus tripulantes, a observação estrita dos procedimentos constantes nos manuais de voo, bem como às práticas percebidas no que diz respeito à recrutamento e seleção de membros para suas tripulações."

A companhia aérea havia assinado um contrato com a empresa ACI - Air Crew International, que assumiu a responsabilidade de treinar a fornecer tripulantes para os vôos da empresa aérea do Suriname. No caso, o comandante deste voo já havia sido suspenso por irregularidades e não cumprimento de regras básicas em diversas ocasiões. Pior: com 66 anos de idade, simplesmente não poderia ocupar um assento na cabine de comando. A legislação local proibia a operação de pilotos com mais de 60 anos.

Também foi divulgado que durante o voo, a tripulação mais do que uma vez manifestou receio em relação à quantidade de combustível remanescente na fase de chegada. Embora as transcrições da caixa preta não deixem esta questão aparente, este foi um fator contribuinte. Afinal, a "Síndrome de Chegar Em Casa" mais uma vez parece ter sido fator contribuinte para a tragédia. Nota-se também pela transcrição do CVR que o primeiro oficial pouco fez para alertar, de forma mais clara e contundente, as flagrantes violações dos procedimentos usuais de cabine. A ausência de um check pré-pouso é apenas um dos muitos sinais de que o comandante da aeronave pode ter mostrado excesso de confiança em suas habilidades, em detrimento de manter a si e aos seus comandados dentro das rotinas recomendáveis para uma aproximação em condições favoráveis, como foi aquela do voo PY 764. Ao final, percebe-se que falhas individuais e sistêmicas, combinaram-se para formar uma armadilha mortal para os infelizes ocupantes do jato da Surinam Airways.

Fotos da Tragédia do Voo 764 da Surinam Airways

Tragédia do Voo 764 da Surinam Airways

Tragédia do Voo 764 da Surinam Airways
Memorial para as vítimas do Voo 764


https://en.wikipedia.org/wiki/Surinam_Airways_Flight_764

Fonte: Este relato foi extraído do extinto site Jetsite, do grande Gianfranco "Panda" Beting, da seção Blackbox, com fins de não se deixar perder o conteúdo daquele fabuloso site, nossa principal fonte de referência no mundo da aviação nos anos 2000. O texto é do Panda, algumas fotos e vídeos colocamos a parte, para contribuir com mais dados e informações.

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