IDN 1851: Pequenos Detalhes de uma Grande Tragédia

O Desastre Aéreo de Santa Maria

Na manhã da quarta-feira, dia 8 de fevereiro de 1989, um grupo de 137 turistas italianos apresentou-se no tranquilo aeroporto de Orio Al Serio (BGY), que serve a pequena e abastada cidade de Bergamo e região da Lombardia, norte da Itália. O frio do inverno europeu era uma razão a mais para que cada um dos turistas mostrasse um sentimento de antecipação pela jornada que teriam pela frente: o longo voo até Punta Cana (PUJ), na República Dominicana, com uma escala técnica para reabastecimento na cidade de Santa Maria, no arquipélago dos Açores, Portugal. Em questão de horas, o frio e a neve da parte setentrional da velha "Bota" dariam vez à suave brisa caribenha, às areias brancas e finas e ao mar turquesa de Santo Domingo.



O voo naquela manhã seria operado por uma pequena empresa charter norte-americana, a Independent Air. A aeronave escalada para cumprir o IDN 1851 era um veterano Boeing 707-331B, ex-TWA, matriculado N7231T. Construído e entregue em 1968, a aeronave já contava com 44 mil horas de voo em 21 anos de carreira. Tinha realizado nada menos que 12.589 viagens sem passar por maiores problemas. Voava para a companhia há pouco mais de um ano, desde que havia chegado de sua antiga operadora.

A Independent Air era mais uma das muitas companhias criadas de forma modesta, mas que havia ganho ímpeto após o "Deregulation Act" de 1978, que liberalizou o transporte aéreo nos Estados Unidos. Com pouco dinheiro em caixa, empregava aeronaves já ultrapassadas. Pagava abaixo do mercado seus colaboradores e mantinha como padrão operacional o cumprimento dos limites mínimos, apenas toleráveis, quanto a treinamento, manutenção e segurança operacional. Era o que se costuma chamar de "Empresa Pirata" nos círculos mais conservadores da aviação. Operava uma frota de quatro veteranos 707, entre os quais o N7231T.

No entanto, era justamente por operar com custos reduzidíssimos que a companhia podia operar serviços a preços competitivos, característica fundamental para operação de serviços charter. Em média, a companhia realizava mais de 500 voos deste tipo ao ano.

A tripulação de sete pessoas era composta por profissionais norte-americanos. O comandante era Leon Daugherty, 41 anos; Sammy Adcock, 36 anos, era o primeiro-oficial; Jorge Gonzalez, 34, servia como engenheiro de voo. As quatro comissárias eram Yvette Murray, 26, Angela Urban, 24, Helen Ziegler, 45 anos e Lorraine McGuire, 39.

A partida de Bergamo foi as 10h04 (todos os horários em relação a GMT). A primeira etapa da viagem foi absolutamente normal, sem qualquer percalço. O Boeing 707, apesar da idade, não apresentava qualquer discrepância, falha técnica ou problema mecânico. Pouco mais de três horas depois, a tripulação chamou o controle de aproximação de Santa Maria. Em questão de minutos, teria início a descida. O voo 1851 então começaria a perder altura. Hora de entrar a bordo da cabine de comando do 707.

CAP: Comandante
F/O: primeiro-oficial
F/O-RDO: transmissão de rádio do primeiro-oficial
F/E: engenheiro de vôo
F/E-RDO: transmissão de rádio do engenheiro de vôo
CAM: Gravação captada pelo Cockpit Area Microphone (gravador de voz de cabine)
CAM- ?: Gravação na qual não foi possível identificar o autor da fala.
APP: Controle de Aproximação de Santa Maria
TWR: Torre de Controle do aeroporto de Santa Maria


A Tragédia do Voo IDN 1851 da Independent Air

13h25:47 TWR: "Independent Air 1851, desça para 3 mil pés, ajuste altímetro 1027, pista em uso 19.
13h43:57 - F/E-RDO: Santa Maria, Independent Air 1851.
13h44:07 - APP: 1851 Santa Maria, prossiga.
13h44:11 - F/E-RDO: Bom dia, gostaria de obter as condições meteorológicas atuais em Santa Maria.
13h44:20 - APP: 1851, vento 260 com, ah, 14 nós, picos de 24 nós, visibilidade de mais de 10km, uno octa a 1200 pés, seis octas a 3000 pés, temperatura 17, QNH 1019.
13h44:44 - F/E-RDO: 1851, a pista em uso, por favor.
13h44:48 - APP: Repita?
13h44:50 - F/E-RDO: A pista em uso, por favor.
13h44:55 - APP: Pista em uso é a uno nove.
13h45:00 - F/E-RDO: Uno nove, grato.
CAM-? Está chovendo mais ao sul.
CAM-? Mas temos fortes ventos de través, não acha?
13h45:58 - CAM-? Ahn, 300 e chuva.
13h46:13 - CAM-? Ninguém me preparou para isso.
13h48:16 - F/O-RDO: Contole Santa Maria, Independent Air 1851 para início de descida.
13h48:23 - APP: Independent Air 1851 livre para descer ao nível 40.
13h48:30 - F/O-RDO: Livre para 4 mil, Independent Air 1851.
13h54:22 - CAM-?: Feche esta porta, por favor? Está uma selva aí atrás!
CAM-?: Ok, fechando.
CAM-?: Minha primeira vez nos Açores. Está sempre nublado assim?
CAM-?: Parece.
13h55:49 - APP: Independent Air 1851, qual a sua altitude na presente?
13h55:53 - F/O-RDO: Passando nível 220.
13h55:57 - APP: Entendido, reporte na posição Echo.
13h56:00 - F/O-RDO: Reportará Echo, Independent 1851.
13h56:15 - F/O-RDO: Independent 1850, er... 1851, passando Echo agora.
13h56:23 - APP: Ok, Independent 1851, contate a torre de Santa Maria em 118.1.
13h56:28 - F/O-RDO: 118.1, tenha um bom dia.

Neste momento, o primeiro oficial Adcock muda de frequência no rádio e chama a torre de controle do aeroporto de Santa Maria. Quem responde é uma jovem controladora, ainda estagiária, ainda em treinamento, com pouco experiência em sua profissão. Essa falta de experiência seria um fator determinante dos acontecimentos a seguir.

13h56:35 - F/O-RDO: Boa tarde, torre Santa Maria. Independent Air 1851 passando nível 220 para nível 40.
13h56:47 - TWR: Independent Air 1851 ciente, livre descida para 3 mil pés, QNH 1027 e a sua pista será a uno nove...

Neste instante, a controladora faz uma pausa, antes de prosseguir em suas instruções:

13h56:59 - TWR: ...e espere aproximação ILS para a pista 19, reporte ao atingir 3 mil pés.

Infelizmente, a pausa que a controladora deu foi interpretada pelo primeiro oficial do 707 como o final da sua mensagem. Ele então acionou seu microfone e emitiu sua resposta à instrução, exatamente no mesmo instante que a controladora concluía as suas instruções.

13h56:59 - F/O-RDO: Liberado para descer a dois mil pés e... ah, 1027.

Como ambas as transmissões foram feitas simultaneamente, a torre simplesmente não ouviu a tripulação do Boeing 707 repetindo a instrução que havia sido compreendida de forma errônea. Ou seja: a controladora na torre não percebeu que o primeiro oficial Adcock havia cometido um engano quanto à altitude que deveria manter.

O primeiro oficial declara que sua aeronave havia sido autorizada a descer a 2 mil pés, quando na verdade, a instrução havia sido para descer e manter 3 mil pés. A controladora de plantão na torre não ouviu a transmissão e, desse modo, não percebeu a discrepância, um detalhe que teria consequências trágicas.

Como se isso fosse pouco, a controladora informou o ajuste de pressão erroneamente. Ela informou um QNH de 1027, quando na verdade o ajuste correto seria de 1018.7 hPa. Esta informação fez com a que a tripulação ajustasse o altímetro seguindo a instrução recebida, o que acarretou uma diferença em relação à verdadeira pressão que, na prática, fez com que o Boeing 707 voasse 80 metros abaixo da altitude onde deveria voar. Justamente os 80 metros que fariam a diferença entre a vida e a morte.

Segundos depois da transmissão da torre, o comandante Daugherty nota a discrepância e alerta seu primeiro oficial, que no entanto não faz qualquer comentário.

13h57:05 - CAP: Corrija para três mil (pés).

O primeiro oficial parece apenas preocupado com a informação referente ao ajuste de altímetro, QNH.

13h57:12 - F/O: O que ela disse, 1027 milibares?
CAP: Foi.

A bruxa acabara de escolher os nomes de seu funesto sorteio: o comandante Leon Daugherty e o primeiro Oficial Samuel Adcock. Eles pagariam o mais alto preço pela sequencia de pequenos erros e mal entendidos. Manobrando em meio às nuvens, a bordo do Boeing 707 foi iniciada a leitura do check-list para pouso.

F/E: Aviso de cintos de segurança.
F/O: Ligados.
F/E: Window heat.
F/O: Mínimo.
F/E: Anti-ice.
F/O: Desligado.
F/E: Logo lights.
F/O: Desligadas.
F/E: Pressão de freio de emergência.
F/O: OK.
F/E: Altímetros.
CAP: Regulados e checados.
F/O: Regulados e checados.
13h57:43 - F/E: Dados para pouso, EPR e bugs de velocidades.
CAP: Uno dois cinco.
F/O: Uno dois cinco na direita.
F/E: Cintos de segurança?
CAP: Ok, na esquerda.
F/O: Estão ok.
13h58:09 - F/E: Agora estamos nos divertindo.
CAP: Hey, Hey.
F/O: Estamos nos divertindo, não?
CAM-?: Ah, sim.
13h58:16 - F/E: Quase tanta diversão quanto... [Risos]
CAM-?: Essa eu não conheço.
CAM-?: Nem eu.
CAM-?: De onde você vem com essa?
CAM-?: Hem?
CAM-?: [Risos]
13h58:49 - CAP: Ah, cada uma.
F/O: Por que este DME mostra 198 milhas se estamos bem mais próximos que isto?
13h59:08 - F/O: Não sei se eles têm. Não sei se eles têm um DME em Santa Maria.
13h59:15 - F/O: Bem, nós devemos estar perto, de todo modo.
13h59:18 - CAP: Setenta milhas.
13h59:32 - F/O: Livrando dez mil.
14h02:14 - F/O: Leme, Leon. Leon?
CAP: Quando você estiver pronto, maestro.
CAM-?: Maestro... Ha, ha.
14h02:28 - CAP: Não está fazendo muito calor hoje, aí fora.
14h02:31 - CAM-?: [Assobiando]
14h03:18 - F/O: OK, vou colocar o ILS aqui no meu, ok, Leon?
CAP: OK.
F/O: Uno três zero.
14h03:55 - F/O: Ah sim, depois de cruzar dois mil pés, vamos estar abaixo das nuvens.
14h04:19 - CAP: No caso de não avistarmos, a proa de arremetida deverá ser de 187.
F/O: Ok.
CAM-?: [Risos.]
14h05:41 - F/O: Mais mil pés para descermos.
14h05:43 - CAM-?: Mais mil.

O Boeing continuava perdendo altitude, passando da segurança dos 3 mil pés sobre o nível média do mar para a altitude de 2.000 pés.

14h06:01 - F/E: Está lá a ilha.
F/O: Onde é o aeroporto?
CAM-?: Do outro lado da ilha.
14h06:17 - F/O: Mais 400 pés para descer. Não sei se vai dar visual ou não.
CAM-?: Nós vamos é ser lavados pela chuva, isso eu sei.
14h06:46 - F/E: É.
CAM-?: Ah, não há lugar como Santa Maria.
CAM-?: É mesmo?
CAP: Para tomar uma cerveja.
14h06:57 - Cap: Estamos a dois mil pés.
F/O: Ok, entendido.
CAP: Para a esquerda.
CAP: E a oito milhas DME.
CAM-?: Paredões.
CAM-?: É.
14h07:34 - F/O: Estamos passando pelas camadas (de nuvens) aqui.
14h07:52 - CAP: Não consigo manter este F.D.P. nivelado aqui.
14h07:57 - F/O: Quer que eu te ajude?
14h08:00 - CAP: Não.

Cinco segundos depois, soa na cabine o alarme de proximidade de solo, o Ground Proximity Warning System.

14h08:05 - GPWS: Whoop whoop pull up! Whoop whoop pull up! Whoop whoop pull up! Whoop whoop pull.

O alarme parece ter tido um efeito entorpecedor nos tripulantes. A atmosfera a cabine de comando, até então relaxada - até demais - mudou completamente. Mais nenhuma palavra foi dita a bordo do cockpit. Apenas a gravação metálica do GPWS pôde ser ouvida nos segundos finais do voo 1851. Com mais sete segundos, a fita de gravação registrou, por uma fração de segundo, a colisão do nariz do Boeing com os últimos metros do Pico Alto, uma elevação com 1.795 pés de altitude.

14h08:12 - GPWS: Som do impacto e fim da gravação.

O Boeing bateu em um muro de pedra, que rodeava uma pequena estrada, a menos de 5 metros do topo. A crueldade deste acidente está também no fato de que, a despeito do erro na altitude mantida pelo jato, se o ajuste QNH tivesse sido corretamente instruído pela torre aos pilotos, o jato estaria voando 80 metros acima e certamente teria se livrado da colisão, ainda que por um triz, com o topo do Pico Alto. E, menos de um minuto depois, teria pousado em segurança em Santa Maria.

Uma violenta explosão sacudiu a ilha, galvanizando a atenção de todos para o alto da montanha, envolta em nevoeiro. Em uma fração de segundo, o portentoso 707 transformou-se em uma bola de fogo, depois reduzida a uma massa disforme de metal fumegante. A colisão foi devastadora, não dando nenhuma chance aos 137 passageiros e 7 tripulantes do Boeing 707. Uma trágico final para 144 vidas, ceifadas por uma pequena cadeia de detalhes, por uma sequência de pequenos mal entendidos, uma somatória de pequenos fatores que teriam uma dolorosa consequência.

Fotos, Vídeos e Informações da tragédia do Voo IDN 1851


Acidente no Voo IDN 1851 da Independent Air

Desastre no Voo IDN 1851 da Independent Air

Morte no Voo IDN 1851 da Independent Air

Explosão

Tragédia

Tragédia no Voo IDN 1851 da Independent Air

Air Crash Disaster


https://livrodesastreaereosantamaria.wordpress.com
https://en.wikipedia.org/wiki/Independent_Air_Flight_1851

Fonte: Este relato foi extraído do extinto site Jetsite, do grande Gianfranco "Panda" Beting, da seção Blackbox, com fins de não se deixar perder o conteúdo daquele fabuloso site, nossa principal fonte de referência no mundo da aviação nos anos 2000. O texto é do Panda, algumas fotos e vídeos colocamos a parte, para contribuir com mais dados e informações.

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